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  • Informel
    14.02.2020—02.05.2020
    INAUGURAÇÃO: 13.02.2020



    Vista geral da exposição "Informel" de Klaus Mosettig,
    UMA LULIK_ _
    Fotografia: Bruno Lopes





    Vista geral da exposição "Informel" de Klaus Mosettig,
    UMA LULIK_ _
    Fotografia: Bruno Lopes





    Vista geral da exposição "Informel" de Klaus Mosettig,
    UMA LULIK_ _
    Fotografia: Bruno Lopes





    Vista geral da exposição "Informel" de Klaus Mosettig,
    UMA LULIK_ _
    Fotografia: Bruno Lopes





    Vista geral da exposição "Informel" de Klaus Mosettig,
    UMA LULIK_ _
    Fotografia: Bruno Lopes





    Vista geral da exposição "Informel" de Klaus Mosettig,
    UMA LULIK_ _
    Fotografia: Bruno Lopes





    A repetição é, aqui, potência da linguagem

    O fascínio pelo arquivo – Hal Foster chama-lhe “impulso arquivístico” – ocupa um lugar central no pensamento e nas práticas artísticas contemporâneas. O arquivo é, contudo, entidade polimórfica que se insinua em diferentes formas e formatos consoante contextos, tensões e intensões. Foucault, por exemplo, aborda o arquivo enquanto superstrutura de constituição e modificação de acontecimentos enunciativos que, no seu contexto social, cultural, económico e político, forma o(s) discurso(s). Ou seja, é o arquivo que define (e revela) as condições de inscrição sensível das várias práticas discursivas: a dizibilidade, a visibilidade, a recordação e o esquecimento.  Sven Spieker afirma que os arquivos funcionam como uma espécie de correlato tecnológico da memória. Jacques Derrida, por seu lado, diagnostica uma patologia do arquivo, quando em 1995 publica Archive Fever. A Freudian Impression (Mal d’Archive: une impression freudienne, no original). Para Derrida, o arquivo é já um lugar enfermo, cativo da sua própria ambivalência que o transforma em território de violência, de cristalização e por isso destruição e erradicação do passado.

    De acordo com estes autores, a dimensão exterior do arquivo, a sua condição de intrínseca visibilidade, reforçam o seu potencial de violência, pois camuflam o controlo e a censura que regem a sua constituição inclusiva e exclusiva, e que administra a sua acessibilidade. A obra de Klaus Mosettig desafia estas noções de arquivo, pois embora o seu trabalho seja também arquivístico, as escolhas que efectua são subjectivas, pessoais, articuladas em torno da realidade social, mas também de uma visualidade afectiva. Situado nos interstícios entre o visível e o invisível, o arquivo de Mosettig é subversivo, pois não é estável nem retroactivo, não organiza a história (da arte e das imagens) numa cronologia de documentos, produz novos significados e outro conhecimento visual que articula diversas temporalidades.  O trabalho do artista resulta sempre de um processo semelhante: escolha de imagens deste arquivo pessoal, que posteriormente são desconstruídas e reconstruídas pela projecção lumínica desenhada, com resultados (aparentemente) abstractos.

    Neste contexto, as obras de Mosettig – imagens/objectos artísticos que procedem de uma anterioridade visual (re)conhecida – assumem-se como instâncias privilegiadas para se observar as consequências da visão enquanto capacidade crítica e empática. Por um lado, são plataformas de transformação do olhar e, nesse sentido, poderão expandir as possibilidades de inscrição da matéria visual, mnemónica e afectiva no imaginário artístico. Por outro, ao deixar o observador saber aquilo que são as imagens primeiras – tomem-se como exemplo as séries do artista que tinham como ponto de partida obras de Jackson Pollock, Josef Albers ou a missão Apollo 11 – permite reflectir sobre a distância ambígua que separa sempre o abstracto do concreto.

    Na Galeria UMA LULIK, Klaus Mosettig apresenta um conjunto de desenhos da série Informel, homónima à exposição. Esta série é baseada em 34 desenhos que a filha do artista realizou entre os 10 e os 24 meses e foi produzida pelo artista entre 2014 e 2017. Alterando a escala dos desenhos, numa relação de proporcionalidade, Mosettig percebeu como os traços informais de Lilith se transformavam em obras informalistas facilmente adequáveis no regime imagético da arte contemporânea. O processo do artista possibilita a criação de imagens, posteriores à imagem (original), que não perdem a aura ou adquirem estatuto de cópia ou de simulacro; dá-se, pelo contrário, em cada uma das suas obras, uma acumulação de gestos originais que ampliam a competência epistémica do visual no campo artístico. Nesta série, nos pontos que sugerem (ou mesmo parecem) linhas ou manchas, são reveladas as diversas camadas temporais, assim como as temporalidades múltiplas que os seus desenhos contêm. Se a morosidade e dedicação exigida pelo processo é visível pela proficiência do gesto, a narrativa do traço convoca simultaneamente o passado, o presente e o futuro. Neste caso, ao convocar a relação pai-filha, num ambiente de convívio e cuidado diário que se prolongou durante meses – duração da licença de parentalidade usufruída pelo artista -, o tempo, nas suas diversas fisionomias e circunstâncias de experiência tem ainda mais relevância. Esta acumulação de temporalidades permite, com bastante conforto, afirmar que os desenhos de Mosettig podem ser vistos como pós-imagens.

    As pós-imagens são expressões artístico-culturais cuja nominação se ancora num fenómeno óptico-fisiológico. A existência de pós-imagens – imagens que persistem na retina depois da exposição a um objecto – é discutida, desde há muito, pela fisiologia e neurologia, sendo hoje consensual a sua existência. As pós-imagens de Klaus Mosettig apresentam-se em forma de “remediações”, para usar a terminologia de Bolter e Grusin – transposições intra e intermediáticas – dos desenhos da sua filha: entidades imagéticas (re)feitas na e pela sua prática artística que faz uso de um estatuto icónico anterior. Para Klaus o estatuto icónico das imagens que compõem o seu arquivo pessoal, não responde a uma hierarquia que distingue o artístico do vernáculo, o reconhecido do conhecido: qualquer imagem próxima o pode integrar.

    As pós-imagens na arte contemporânea permitem entender o poder (latente e subversivo) das imagens primeiras que, por associação de faculdades, trespassa para os objectos artísticos, ou seja, a possibilidade de qualquer imagem se tornar no seu próprio (contra)discurso pela aproximação crítica ou pelo (re)tratamento artístico. A representação no trabalho de Mosettig deve, portanto, ser entendida, também, pela acção que condensa na sua própria composição linguística: a de re-apresentar alguma coisa.

    A obra de Klaus Mosettig possibilita, assim, uma reflexão sobre genealogia estética e ética das imagens e da sua inscrição sensível nos regimes escópicos em vigor; a forma como o visual constrói o social e o social, o visual, em diferentes economias de visibilidade. A recorrência ao passado e a reutilização de imagens anteriores, mentais ou materiais, no seu trabalho, não constitui, contudo, uma reprodução de enunciados que se repetem gratuitamente ou como forma de vigilância discursiva, podendo dizer-se, com Deleuze, que a repetição é, aqui, potência da linguagem.

    Ana Cristina Cachola



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