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  • Olokun
    12.11.2021—22.01.2022
    INAUGURAÇÃO: 11.11.2021



    OLOKUN

    Vista de Exposição | © Bruno Lopes





    OLOKUN

    Vista de Exposição | © Bruno Lopes





    OLOKUN

    Vista de Exposição | © Bruno Lopes





    – texto de Borbála Soós

    As condições que se verificavam nos momentos que precederam a emergência da vida dos oceanos não se alteraram muito no que diz respeito às células do corpo humano, banhadas que são por essa onda primordial que continua a fluir nas nossas artérias. Na verdade, o nosso sangue tem uma composição química análoga à desse mar original, do qual as primeiras células vivas e os primeiros seres multicelulares retiraram o oxigénio e os demais elementos necessários à vida. Com a evolução dos organismos mais complexos, o problema de manter um número máximo de células em contacto com o meio líquido não poderia ser resolvido simplesmente pela expansão da superfície exterior: os organismos dotados de estruturas ocas, através das quais a água do mar poderia fluir, estavam em vantagem. Mas, foi somente com a ramificação dessas cavidades num sistema de circulação sanguínea que a distribuição de oxigénio foi garantida ao complexo crescente de células, tornando possível a vida terrestre. O mar, onde antes as criaturas vivas estavam imersas, está agora encerrado nos seus corpos.

    Sangue, Mar, Italo Calvino

    Os átomos radicais são pixels libertados no ambiente, transformados em objectos 3D omnipresentes. Eles reúnem-se para criar formas e materiais que podem mudar de forma, cor e propriedades quando são estimulados por calor, luz, som ou outros meios. É uma questão de gestão de inputs, do fluxo das correntes, a direcção do calor, a manipulação dos níveis de acidez para impactar nas propriedades ópticas, tamanho, forma e actividade. Neste cenário, a energia da temperatura do corpo, da luz do ambiente, pode ser extraída como fonte de energia para os nossos aparelhos tecnológicos, uma radicalização do seu uso actual dentro dos circuitos dos dispositivos touchscreen: eles carregariam as suas baterias bebendo directamente do sumo da nossa existência, à medida que emanamos de nós próprios, enquanto os seguramos. Assim, eles existiriam sem a confusão de fios, transformadores e tomadas. A ubiquidade não é só estar integrado em todas as nossas actividades, é coexistir, ser sinónimo com todas as células do nosso corpo, cada flutuação da nossa temperatura, cada sombra que projectamos ou ocultamos. É isto o bleed… a margem sangrenta é um limite de tecnologia que não está sobre o corpo, mas sim integrada em cada átomo daquele corpo, cada átomo daquele mundo, aumentando as suas capacidades ao ponto de ele abranger todos os estados, de fixo a fluido, de líquido a cristal.

     

    – Entrevista com Esther Leslie,
    In: Flux until Sunrise, a booklet for Geraldine Juarez, 2018

    As moléculas de cristais líquidos organizam-se de formas que lhes dão propriedades tanto líquidas quanto sólidas. Como no exemplo dado por Esther Leslie1, eles podem ter a capacidade de fluir ao mesmo tempo, como a água, e refractar, como o gelo. Em LCDs (ecrãs de cristal líquido), as correntes eléctricas fazem com que as moléculas se alinhem, permitindo, assim, que vários níveis de luz passem para o segundo substrato e criem as cores e imagens que vemos. As propriedades deste material, agora omnipresente, são aproveitadas em ecrãs planos de vários tamanhos, incluindo computadores, telemóveis, smartwatches e dispositivos de navegação por GPS… Os ecrãs seduzem-nos, não apenas pelo que representam e pelas apps e anúncios que nos tentam mas, também, pela qualidade da materialidade que nos oferecem, com o seu excesso de tons e formas eternamente modulantes e hipnotizantes. Talvez não seja surpreendente que também existam cristais líquidos dentro do nosso corpo. Membranas celulares, ADN, muitas proteínas e os nossos tecidos epiteliais, que revestem as cavidades e superfícies dos órgãos por todo o corpo, contam com cristais líquidos na sua composição2.

    As tecnologias da imagem influenciam como vemos e percebemos o mundo. Recordas o pôr do sol sobre o oceano que vimos no barco? O horizonte aberto com duas ilhas de cada lado: parecia tão CGI, senti que estava a usar um headset de realidade virtual! Expandimos os nossos corpos com headsets e luvas de feedback táctil ou com óculos e barbatanas de mergulho — as nossas percepções oscilam entre as experiências da representação e do real.

    O livro recente de Melody Jue, Wild Blue Media3, abre com a descrição de uma lição de mergulho, de como este é um processo que nos obriga, muito literalmente, a reorientar todo o nosso corpo. A autora diz-nos que um bom mergulhador faz-se através de um longo processo de re-habituação, contrariando os reflexos de verticalidade e tomando consciência das formas como o acto de respirar afecta o movimento, e nos faz afundar a cada expiração e subir a cada inspiração. No livro, Melody Jue propõe uma destabilização das nossas formas terrestres de conhecimento, reorientando a nossa percepção do mundo de forma a considerar o oceano como um ambiente mediático. A autora desenvolve uma metodologia devedora da ficção científica, um desvio conceptual que usa a submersão para nos ajudar a entender como a água do mar pode afectar os modos de criação, armazenamento, transmissão e percepção da informação.

    A obra de Paulo Arraiano emana um sentimento de experiência corporificada. Também para ele, o oceano oferece a possibilidade de outra percepção, ao nível celular ou mesmo molecular dos ecrãs LCD. Questionando as formas como a nossas ideias do mundo podem ser recalibradas no contexto deste corpo de água, Arraiano olha o oceano como material vivo e espaço imaginativo.

    No seu vídeo, Shall We Dance, Arraiano pensa o corpo, a tecnologia e os sentimentos como se estivesse a fazer o «download de emoções enquanto toma uma bebida gelada». No vídeo — um momento prolongado (ou talvez infinitamente suspenso) de querer estar em contacto, mas não saber exactamente como fazê-lo — a água torna-se na medida do tempo. Enquanto o narrador nos fala em ligares e desligares diferentes, ondas desfazem-se sobre os corpos de míticas medusas e tóxicas caravelas portuguesas flutuando em alto mar.

    Não é por acaso que as sereias são escorregadias. Os seus papéis e intenções podem variar, mas na maioria das vezes elas aparecem como catalisadoras de uma mudança, de uma transformação e renovação que surge do encontro entre dois mundos. Inspirados numa diversidade de animais, sereias e tritões (representados frequentemente com sexualidade ambígua) estão presentes no folclore de muitas culturas em todo o mundo e através dos tempos. Arraiano nutre um interesse profundo por criaturas de sedução e pela natureza da transformação. Em Postfossil Images, os esqueletos de criaturas quase míticas sofrem ligeiras alterações e começam a parecer-se com órgãos humanos.

    O título da exposição individual de Paulo Arraiano, Olokun — que significa «senhor dos mares» — faz referência a um espírito Orixá que é também um espírito de transformação.
    Venerado como o governante de todos os corpos de água, nas regiões costeiras da África Ocidental, Olokun assume uma forma masculina, enquanto nas regiões interiores do continente é adorado na sua forma feminina ou andrógina. Com pequenas diferenças, Olokun é reverenciado um pouco por todo o oceano Atlântico, em lugares como a Nigéria, Benim, Brasil, Venezuela, Cuba, EUA e outros, tendo acompanhado o êxodo forçado dos povos Iorubá e Edo no contexto da passagem do meio e do tráfico transatlântico de escravos. Olokun está associado à riqueza material mas também rege as habilidades psíquicas, o sonho, a meditação, a saúde mental e os processos de cura através da água. Também desempenha um papel importante nas trocas e transições entre os domínios terrenos e espirituais.

    1. Esther Leslie, Liquid Crystals: The Science and Art of a Fluid Form. Reaktion Books, London, 2016.
    2. Interview with Esther Leslie, In: Flux until Sunrise, a booklet for Geraldine Juarez, 2018
    3. Melody Jue, Wild Blue Media: Thinking through Seawater, 2020.



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