© Bruno Lopes & UMA LULIK__
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Gesso Plaster
10 x 5 x 3 cm
© Fábio Colaço & UMA LULIK__
Óleo sobre tela
30 x 40 cm
© Fábio Colaço & UMA LULIK__
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O que nos cabe amanhã
Os conceitos são um modo de organização de ideias abstractas permeadas pelo concretismo do mundo material e, ainda que se estranhe, do mundo virtual. Os conceitos criam-se e recriam-se consoante a nossa exposição a elementos concretos metamórficos que a abstração transforma em símbolos, índices e metáforas. Ao mesmo tempo, são também os conceitos que orientam regimes de governança, estruturas de administração e modelos de pensamento.
Cada conceito emerge, no trajecto do processamento cognitivo, como coerência ou epítome predicável de uma entidade – é uma captura mental abstracta do que há de elementar num determinado objecto ou conjunto de objectos. Daí que, na arte conceptual, a ideia que precede a obra seja mais relevante que o objecto artístico em si. Nesta linhagem, o medium não tutela o gesto criativo, embora se possa reconhecer a primazia do objectual e/ou linguístico no lastro do conceptualismo. Fábio Colaço é um artista neo-conceptual pois, apesar de a sua obra se edificar sempre sobre a tríade ideia-conceito-objecto, admite gestos de forma e expressão, mais ou menos contidos, na sua prática. Destes gestos resulta um trabalho em que o formalismo – a importância formal da obra – é, também, relevante para os significados que constrói.
Em Tomorrow, apresenta reflexões sobre um futuro suspenso em tempos de realismo capitalista, para usar a expressão de Mark Fisher. Esta expressão contém a descrição da situação política actual em que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do sistema capitalista. O artista, tal como Fisher, apresenta exemplos da vida quotidiana e da cultura popular para demonstrar que o capitalismo passou de ideologia a ontologia do mundo, sendo quase impossível imaginar uma alternativa viável ao modelo financeiro, económico, social e cultural vigente.
As obras que compõem a exposição fazem, assim, parte de uma língua franca imagética descodificável, se não globalmente, do lado ocidental do planeta: a partir do Ocidente problematiza-se a dinâmica ocidentalocêntrica. Fazendo uso das ferramentas do modelo capitalista, e para exercer a sua própria crítica, ícones e símbolos habitam o espaço de exibição. Uma bola de cristal opaca clama No Future, no título, evocando um sentimento geral de pessimismo sobre a continuidade ou a possibilidade de futuro. Este sentimento, ancorado principalmente na emergência climática e previsões sanitárias negativas, alastrou-se com a consciência de um estado social falido ou ausente, que faz da precaridade condição manifesta da maioria da população mundial.
Um balde de construção civil perfurado remete-nos para a gravíssima crise da habitação com base na especulação imobiliária e de uma mobilidade migrante hierárquica e injusta. Desde que Anselm Jappe proclamou o betão como arma de construção maciça do capitalismo, sabe-se que os materiais utilizados (mais frágeis e mais fáceis de produzir) são uma das dimensões da gestão capitalista do espaço e da injustiça social daí resultante.
Ainda que na ressaca da monotemática pandémica, é urgente insistir-se e discutir-se os seus efeitos e, por isso, Fábio Colaço mostra-nos, não só uma panorâmica de mal-estar camuflado do pós-pandemia, como objectos que sintetizam esse estado. Não será, de todo, novidade que os confinamentos sucessivos, o medo do vírus e, por isso, do contacto, a falta de sociabilização, entre outras dinâmicas contra-natura que marcaram a pandemia instauraram questões de saúde mental de forma nunca antes vista. O Prozac, nome comercial da substância antidepressiva fluoxetina, e também um dos fármacos mais vendidos durante o período pandémico, mostra-se na exposição fundido a ouro, material precioso e sacralizado.
O desânimo e a descrença surgem também no trabalho de Colaço através da transformação em néones – dispositivos publicitários por excelência – de frases apócrifas grafitadas em espaços urbanos. Em Tomorrow, é-se iluminado pela inscrição “The world is full of Kings and Queens, who blind your eyes and steal your dreams”. Esta recordação dos malefícios de uma hierarquia social em fosso é mais uma chamada de atenção para as desigualdades provocadas pelo sistema capitalista. Neste olhar apurado sobre um presente que se pensa em futuro, não falta sequer a reprodução pictórica de memes que mostram uma das personagens charneira da cultura do capital – Elon Musk.
A vigência e auto-reprodução do capitalismo não implica que este não se transforme. Tal como os vírus que se alteram para garantir a sua própria sobrevivência, também o capitalismo se modifica para continuar a funcionar. Se durante muito tempo operou através de um controlo biológico dos corpos através da vigilância, punição e obrigatoriedades laborais – a biopolítica cunhada por Foucault – hoje, a esse controlo, sobrepõe-se a antecipação comportamental. Uma orelha (que tem como molde a do próprio artista) revela, na exposição, que o grande irmão continua presente na contemporaneidade. O grande irmão que nos ouve não só naquilo que partilhamos em vontade comunicante (nas conversas, mais ou menos, banais do dia, naquilo que partilhamos em rede constantemente, nos sussurros mais privados), mas que se sofisticou de tal forma que ouve também, antes de nós, aquilo que diremos amanhã.
Tomorrow é uma exposição sobre o estado do mundo e o nosso estado no mundo, e não foge à literalidade deste manifesto. O mundo na sua configuração imagética ocupa, neste sentido, um lugar de destaque. Um mapa-mundo construído, à escala da sua representação standard, com 2500 peças de dominó é talvez o elemento mais imponente do conjunto expositivo. Por um lado, a convocação da cartografia revela um dos instrumentos discursivos do capitalismo e colonialismo, por outro, mostra um mundo gamificado em que o importante é ganhar (ganhar sempre mais) e acreditar que somos agentes e não sujeitos cada vez mais (as)sujeitados. Como explica, com particular proficiência, Byung-Chul Han, a vigilância e a punição dão lugar à motivação e optimização. A propagação de uma disciplina capitalista está, igualmente, presente no léxico que esta obra convoca à economia de escala, ao efeito dominó.
O mundo, no seu sentido planetário, surge também na representação do mar, outro espaço de ocupação extractivista do capital. Uma tela, em coincidência cromática com a parede na qual se sustenta, mostra o NCS (sistema de definição de cores) do mar nos mapas estandardizados. Nestas águas, que não deixam de remeter para a urgência da ecologia azul, são negociados significados extraídos ao estímulo sensorial que colorir constitui e acrescentam muitas gotas ao presságio de um futuro cancelado, de um amanhã em dúvida permanente.
Contudo, apesar das impossibilidades pragmáticas de um amanhã em longevidade – já anunciadas por pensadores das mais variadas áreas da ciência e do pensamento –, o amanhã, enquanto tropo da imaginação, é um lugar extremamente prolífico. A dificuldade da espécie humana se conceber em finitude leva a que seja para lá do presente que habita o desejo, o medo, os sonhos, a idealização. Todas estas formas de expressão humana são essenciais para o equilíbrio natural e da natureza. Todas estas formas de expressão humana são negadas ou distorcidas pelo sistema capitalista e toda a sua violência.
Controlo, vigilância, extractivismo, domesticação dos corpos e das imaginações… tudo cabe no amanhã de Fábio Colaço, até um apelo ao que nos cabe, a nós, fazer amanhã.
– Ana Cristina Cachola
Fevereiro de 2023